África para educadores, África para sala de aula
por Amanda Carneiro
A imaginação
medieval e a situação colonial na África contribuíram significativamente para a
criação de imagens estereotipadas em relação ao continente e seus habitantes. Como
atesta Adam Hochschild, a África antes do século XV era vista como o inferno bíblico:
“Na
imaginação medieval, essa era uma região de terrores indizíveis [...] onde dos
céus jorram lâminas líquidas de fogo e a água ferve [...] onde rochas de
serpentes e ilhas de ogros espreitam a chegada do marujo, onde a mão gigantesca
de Satã se estende das profundezas insondáveis para agarras os incautos, onde a
pessoa se torna negra de rosto e de corpo, como marca da vingança de Deus pela
insolência de tentar desvendar-lhe os mistérios proibidos. E, ainda que
conseguisse sobreviver a todos esses perigos tremendos e navegar adiante, o
explorador chegaria então ao mar da obscuridade, e se veria perdido para sempre
nos vapores e limbo da beirada do mundo.”
Trecho
do livro “O fantasma do Rei Leopoldo”
Posteriormente,
durante a dominação colonial, discursos científicos justificavam o mito do
homem selvagem:
“Na sua mais baixa organização, ele é dolicocefálico,
tem a mandíbula projetada, a testa retraída, mais escalpo que face, sem barriga
da perna, com pele de pepino, calcanhar de cotovia (lark heeled), com pés
largos amplos e chatos; seu cheiro é fétido, seu cabelo é esturricado e crespo,
e seus pelos são como sementes de pimenta. Seu intelecto fraco, moral
deficiente, amabilidade forte, temperamento resistente, destrutividade
altamente desenvolvida, e sensibilidade à dor comparativamente pouca. Não é de
maravilhar-se que os caucasianos ensinam a si mesmos por uma fábula a acreditar
que esta raça foi amaldiçoada para ser os serventes dos serventes”.
Burton, Richard. First Footsteps in East Africa. Nova
Iorque. Dover Publications, 1987.
Ainda hoje, a
mídia visual e impressa veicula imagens e textos pejorativamente marcados por
impressões como as de séculos passados e, como nos alerta Chinua Achebe[1],
esse problema não tem origem na ignorância, foi antes uma invenção deliberada
para justificar o tráfico transatlântico de escravizados e a colonização da
África pela Europa.
As
descolonizações e lutas por independência na metade do século XX apontaram
perspectivas de mudança nesse imaginário pejorativo e impulsionaram
transformações políticas e ideológicas. A metade do século XX também viu
florescer projetos de pesquisa consistentes, com métodos voltados as realidades
e questões do continente. É famoso e facilmente acessível o projeto “História Geral da África” da Unesco, um compilado de oito livros escrito
majoritariamente por africanos africanistas, que perpassam da África antiga a
África contemporânea.
A persistência
do estereótipo do selvagem, de povos a serem resgatados e de males sem fim como
ebola, fome, o vírus HIV, camuflam os processos de resistência de povos
africanos, o poder de agência de seus cidadãos na resolução de problemas, na
formulação de estratégias, a variedade de saídas encontradas para combater os
males legados pelo colonialismo e os caminhos do estabelecimento de nações e
governos democráticos, inseridos na lógica global ao mesmo tempo em que entendem
e dialogam com as especificidades locais.
A
tarefa para professores em sala de aula, ao apresentar tantas diversidades e
complexidades, é tratar as Áfricas como
se tratam todos os outros lugares do mundo: sem a polarização do bom versus o
ruim. Há grandes cidades, algumas bem
desenvolvidas segundo o modelo capitalista corrente, como a Cidade do Cabo na
África do Sul, ou Abuja na Nigéria, desertos imensos como o famoso Saara e o Calaari,
savana com girafas e elefantes, e a floresta densa do Congo com gorilas para
confirmar as expectativas, ilhas com população majoritariamente mulçumana, cinco países
onde é possível se comunicar em português, rei e rainhas que mantem seu poder
simbólico junto ao poder político dos estados nação, uma comunidade de
ex-excravizados brasileiros chamados de
“Agudás”[2],
retornados a região do golfo do Benim e que fazem festa para Nosso Senhor do
Bonfim. Há ainda muitas pistas dessa relação entre a África e o Brasil que por
vezes nos distancia e ora nos aproxima, é possível acompanhar o interesse
recente do Brasil em estabelecer relações comerciais mais firmes em um
movimento de articulação entre o sul global[3].
Cidade do Cabo, África do Sul |
Essas e outras informações já não estão distantes, se o aprofundamento de tópicos em pesquisas mais consolidadas sobre África antes constituíam um desafio enorme, com a aprovação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira em sala de aula, a tarefa ficou mais fácil. Atualmente é possível ter acesso a uma gama considerável de materiais para apoiar o trabalho dos educadores, dois livros paradidáticos são bons exemplos: A África na Sala de Aula: Visita à História Contemporânea, de Leila Leite Hernandez e África e Brasil africano, da Marina de Mello e Souza. Mas há ainda sites como o projeto A Cor da Cultura, com livros, vídeos e sugestões de atividades.
Percorrer o
caminho as artes contemporâneas africanas e utilizar objetos da cultura
material como fonte e documento para ações em sala de aula podem apontar estratégias
que associem o uso do livro às linguagens visuais. Recentemente, o Museu Afro
Brasil realizou uma exposição com este tema chamada Africa, Africans e para a qual foi elaborado um roteiro de visita que conta com muitas imagens de obras de arte e questões
interessantes a serem respondidas sobre o dialogo que as artes têm com a
História.
Entretanto,
antes de começar o trabalho com os alunos, é preciso responder para si mesmo o
quanto estigmatizado é o seu imaginário sobre África e quais os caminhos que
são possíveis de trilhar como educador para ser o primeiro a superar a barreira
e atravessar o estereótipo para então trabalhar com África, como a África
merece: considerando toda sua complexidade.
Questões para uma atividade prática
Trabalhando a
África com Mapas
Os mapas constroem não apenas imagens cartográficas
são, também, uma poderosa representação do imaginário e, em alguma medida,
abstração da realidade que para se materializar faz uso de código, simbolos,
signos e ícones. As plantas cartográficas do continente africano durante o
período colonial continham informações que iam desde os povos e línguas locais, às
organizações políticas e sociais, os modos de produção.
Atualmente, a cientificidade
dada aos mapas, inivisibilizam outros processos de construção de discursos,
como o fato de enxergarmos a África muito menor territorialmente do que ela de
fato é. Essas e outras questões serão problematizadas com base na análise de
algumas plantas cartográficas.
Você verá aqui um conjunto de mapas com algumas questões. Em grupo, discuta
sobre o que o mapa suscita.
Quando se diz que alguém “está por
cima”, está tudo bem ou tudo mal?
Onde está a Europa no Mapa? O que dizem
sobre a Europa?
E onde está a África? O que dizem sobre a África?
O Que há de diferente entre esses mapas?
Qual o tamanho dos continentes em cada um deles? Qual a projeção mais
conhecida? Por quê?
Projeção de Mercator (1569) |
Projeção de Gall Peters (1885-1973) |
Quantos países do mundo cabem dentro da
África? Você enxergava o continente assim?
Mapa etnolinguístico do continente africano (1996) |
Kai Krause -
“O real tamanho da África” (2010)
|
O que esse mapa diz sobre a África? São
só informações geográficas? Que outras
informações podemos obter a partir dele?
Elas são verdadeiras? Para quem?
É possível refletir alguma coisa sobre
os Europeus com o mapa?
Africae nova descriptio - Willem Janszoon Blaeu
(1630)
|
Overview of the slave trade out of Africa,
1500-1900 – Slave voyages (2010)
|
Considere as setas e polos de recepção e
de saída do Mapa.
O que essa grandeza revela? E a direção,
de onde sai e aonde chega?
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