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Festas e religiosidade

Negritude: uma experiência transpessoal

por Marcos Felinto


Olá educador, neste pequeno artigo será proposto um breve exercício interpretativo que consiste em leitura e reflexão. Responda para si as perguntas colocadas abaixo. Tenha consigo pedaços de papel e canetas para que possa escrever e compartilhar com outras pessoas as idéias registradas. Prontos? Considere que a sua história se inicia a partir de eventos sócio culturais, políticos e econômicos anteriores a sua própria existência. Seu nascimento o inseriu em uma trama de relações de troca, nas quais sua participação, intencional ou não, pode fortalecer ou não determinados protagonismos, alterar ou perpetuar os valores e sentidos simbólicos de nossas heranças culturais. Sem perder de vista a colocação acima, reflita sobre as questões seguintes:

Qual é a sua história? O que faz um determinado conjunto de experiências coletivas serem colocada entre seus pertencimentos e não outros? Seu gosto pessoal é capaz de influir no modo como você avalia, acolhe e pratica as muitas heranças culturais que se apresentam diante de ti?

Imagine que, junto com a sua história, há um conjunto de saberes e experiências coletivas que agem ativamente sobre a construção de sua singularidade. Podemos enquadrar em alguns conceitos estes fatores socioculturais que influem sobre nós, mesmo quando não estamos atentamente percebendo sua ação. Herança cultural e ancestralidade, são dois conceitos chave que direcionam luz para histórias longínquas e antigas repletas de hábitos e estruturas de pensamentos fortes o suficiente para perdurar até os dias de hoje. Talvez tenhamos aqui um ponto interessante para entendermos nosso pertencimento afro descendente.


No Brasil, negros e brancos compartilham o histórico resultante da inserção de culturas e povos africanos dentro projeto de expansão (dominação) socioeconômico criado por elites europeias no século XVI. Decorre também deste projeto europeu, com complexidades e ambivalências, a criação do Brasil como estado e a escravidão africana e indígena nas Américas como um dos alicerces históricos deste processo político-econômico. Nos dias de hoje, com o manejo de um vasto referencial cultural afro descendente, criamos diversas manifestações populares capazes de responder ao projeto europeu de dominação cultural ou intencionadas em avaliar o trajeto e reflexos da presença negra neste país. Podemos encontrar na musica, em festas e folguedos regionais, na culinária ou nas religiões de matrizes africanas expressões guiadas por interesses que daqui para frente podemos entender como transpessoais, ou seja, que independem do gosto pessoal, podendo antes serem entendidas como expressões de um pulso coletivo e comunitário diante de amarras sociais hegemônicas, as quais tais grupos não se vêem enquadrados e representados. Dito isto, podemos entender não ser acaso do destino expressões festivas como as congadas e moçambiques dos Arturos, em Minas Gerais, ou, as saídas da irmandade da Nossa Senhora da boa Morte de Cachoreira, em Salvador, serem modos tão particulares de entender, praticar, reinventar e reivindicar não só o cristianismo mas também praticas religiosas de origens africanas como o candombe e o candomblé, respectivamente, novas formas de se entender o humano em condições de transformação.



Em sua vinda para o Brasil, homens e mulheres dos povos Yorubás, Ewés e Fons da Nigéria inseriram em nossa cultura o Òpelè Ifá, também popularizado como rosário de Ifá, colar trançado de palha da costa no qual se prende oito metades de fava de Òpelè, moedas ou pedras semipreciosas.



As semelhanças morfológicas entre este instrumento e o terço -  comumente usado por cristãos portugueses - estimulou, entre negros crioulos, a acolhida de Nossa Senhora do Rosário como santa protetora e esta aproximação, por sua vez, foi a deixa para que os ritos cristãos passassem a incorporar elementos estruturantes de uma cosmovisão africana, como o uso das ngomas, patangomes, gungas e outros instrumentos que reservam ao seu uso a função de evocação ancestral.

A música praticada entre brincantes de congadas e moçambiques, distancia-se da música comercial que geralmente consumimos nas rádios por terem como um de seus muitos atributos o poder de gerar experiências transpessoais de comunhão. Nesta experiência, os ancestrais reverenciados por intermédio dos toques e danças, os músicos tocadores e dançarinos e a audiência que compõe com o campo vibracional do cortejo cantam e dançam às margens do núcleo que conduz o encaminhamento das energias e mensagens ali coletadas.

Mas não é apenas de sons, cânticos e danças que nossa experiência de negritude é preenchida, saberes culinários também penetram nosso cotidiano de modo a alimentarem um calendário litúrgico compartilhado. A distribuição de deliciosas balas, pirulitos, arrozinho, arroz doce, e famoso caruru de Cosme e Damião no contexto festivo (26 e 27 de setembro) voltado aos santos expressam uma prática votiva de múltiplas facetas. Por um lado, expressam agradecimentos aos feitos dos santos parteiros realizados ao longo de um determinado período de tempo; a contraparte disso é a homenagem aos Ibeji - deidades iorubanas relacionadas a maternidade e a prosperidade familiar, que em alguns lugares são também entendidas como o casal de gêmeos resultante da união entre Xangô e Iansã - motivo pelo qual festas devotadas a Cosme e Damião ocorram majoritariamente em terreiros de candomblé e centros de umbanda. A ceia branca, que encerra o primeiro de 4 dias de ações votivas dedicadas a Nossa Senhora da Boa Morte, em cachoeira, Recôncavo Baiano, também sugere relações transpessoais de troca simbólica e transmissão do axé (força vital) entre as filhas de santo que compõe a irmandade.



Os devotos à santa e a audiência, mesmo quando não praticante de religiões de matriz africana compõe energeticamente este ritual, fazem ultrapassar os limites de interesses e filiações pessoais, de modo a fazer com que todos reconfigurem seus pertencimentos culturais, quer percebam ou não o papel que desempenham na prática litúrgica.

Abordamos estes elementos presentes em algumas manifestações regionais para expressar que no Brasil há uma negritude que nos atravessa como uma condição, sem a qual só podemos fazer leituras limitadas de nós mesmos. Esta condição se faz viva e se perpetua em diversos hábitos e trocas simbólicas que fazemos cotidianamente ao vivenciar um calendário multifacetado, fruto de negociações entre instituições reguladoras e os muitos grupos que procuram, pelo embate direto ou velado, protagonizar suas experiências grupais a partir de referenciais próprios.

Feito esta pequena digressão, releia suas respostas às perguntas iniciais deste pequeno artigo e reflita se de alguma maneira elas poderiam ser complementadas sob a luz dos eventos que acabamos de apresentar nos parágrafos acima, se possível, compartilhe com seus parceiros de estudo o desenvolvimento de suas reflexões.

A comida de santo: é o nome genérico que se dá aos muitos pratos que são preparados como oferendas as deidades e entidades do candomblé, umbanda ou mesmo para que sirvam de alimento para os próprios membros das comunidades religiosas. Devemos tomar cuidado e corrigir sempre que possível o uso de expressões pejorativas como “chuta que é macumba” visto que para além do objeto, instrumento musical erroneamente entendido pelo mesmo nome, o que é chamado de macumba diz respeito também a uma visão de mundo com organização, ritos, cânticos e culinárias particulares, que expressam a resistência do povo negro no Brasil.

A música regional: é o nome genérico dado a produção musical de grupos fortemente marcados por identidades regionais, que antecedem a identidade nacional. O contraponto ao regional seria o global, que podemos traduzir como musica de massa, comercial, aquela que mais ouvimos nas rádios e na televisão. Podem possuir caráter de entretenimento e alicerçar a prática de jogos regionais, mas podem igualmente servir a propósitos religiosos. Os instrumentos utilizados muitas vezes seguem um padrão de construção artesanal e os elementos que os compões diferem daqueles com os quais são feitos instrumentos convencionais, podendo serem feitos com madeira e metal, mas também com sucata e objetos de uso cotidiano. Em adição, pode-se afirmar que se o material do qual se cria um instrumento não é convencional seus sons e modos de execução tampouco serão. Lundu, Maracatu, Maxixe, camdombe, Jongo, samba coco, fandango, guitarrada, batuque de umbigada, samba chula são apenas alguns dos milhares de ritmos possíveis de serem encontrados no Brasil.

Indicações de livros: 
Santo também come – Raul Lody. Editora Pallas
Os sons do Rosário, o congado mineiro dos Arturos e Jatobá – Glaura Lucas. Editora UFMG Os meninos da congada, na festa de São Benedito da Ilhabela – Grão editora
Musica transpessoal – Carlos Frigtman. Editora Cultrix e Editora Pensamento


Questões para uma atividade prática

Manifestações populares em sala de aula

Lundu, Maracatu, Maxixe, Candombe, Jongo, Samba Coco, Fandango, Guitarrada, Batuque de Umbigada, Samba Chula são apenas alguns dos milhares de ritmos possíveis de serem encontrados no Brasil. Quantos deles são conhecidos por você e pelos os educandos que te cercam? Que tal passear por cada um deles experimentando suas sonoridades, suas cores, seus instrumentos, seu modo de festejo? Melhor ainda seria compartilhar com diferentes grupos cada nova descoberta.

É possível integrar com outras disciplinas? Será que as artes visuais não permitiria uma pesquisa iconográfica dessas manifestações?

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Neste módulo de conteúdo é possível encontrar referências sobre arte afro-brasileira

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